Há cinco anos, centenas de funcionários chegavam à Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, para iniciar mais um dia de trabalho. Eram engenheiros, técnicos administrativos, operadores e seguranças que atuavam numa mina do tamanho de 14 Maracanãs, de onde se extraía anualmente 8,5 milhões de minério de ferro, o que garantia lucros bilionários. Eles não sabiam, porém, que a cerca de um quilômetro de distância, uma montanha de 86 metros com 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, o equivalente a 400 mil caminhões pipa, estava em situação de risco.

O rompimento da barragem, que poderia ser evitado segundo as autoridades, se concretizou às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019 e se tornou a maior tragédia humanitária do Brasil, com 270 mortos, inclusive duas grávidas, e a contaminação de mais de 300 quilômetros do Rio Paraopeba, atingindo a população de 26 cidades.

Segundo a investigação sobre o caso, o risco que os funcionários desconheciam era algo sabido pelo alto escalão da Vale S.A, responsável pela mina, e da TÜV SÜD, subsidiária alemã que certificou a segurança da estrutura. Por isso, as duas empresas, além de 16 então diretores, foram denunciados pelo Ministério Público. Depois de cinco anos, entretanto, não houve qualquer condenação criminal.

— Continuamos enfrentando violações de direitos humanos mesmo cinco anos depois. É como se a gente acordasse todo dia naquele 25 de janeiro de 2019 — afirma o advogado Marco Antônio Cardoso, morador de Brumadinho, e que perdeu uma prima e amigos, em relação à impunidade. — Minha principal memória era a dificuldade de contato com a minha família. Meus pais moram muito próximos do local do rompimento e senti desespero por achar que todas as pessoas que eu amo estavam mortas.

A tragédia de Brumadinho gerou milhares de processos judiciais, entre ações individuais e coletivas. Na esfera cível, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o governo de Minas e a Vale assinaram um Acordo Judicial de Reparação Integral, em 2021, que prevê o pagamento de R$ 37,68 bilhões em 160 projetos na Bacia de Paraopeba, o que vai desde programas de transferências de renda a monitoramentos ambientais e obras de segurança e reconstrução. De acordo com a Vale, 68% do montante já foram executados.

Já no âmbito criminal, a denúncia começou a cargo do Ministério Público de Minas, mas no ano passado o titular da ação virou o Ministério Público Federal, após três anos de discussões. Os denunciados respondem por 270 homicídios qualificados, crimes contra a fauna, a flora e crime de poluição. Segundo promotores e procuradores, “a situação inaceitável (intolerável) de segurança geotécnica da Barragem I da Mina Córrego do Feijão era plena e profundamente conhecida pelos denunciados”, que teriam sido omissos e assumiram “o risco de produzir os resultados mortes e danos ambientais decorrentes do rompimento”.

O principal argumento da acusação é que providências poderiam ser tomadas para evitar a tragédia. A investigação revelou que o risco da barragem era de conhecimento interno, inclusive exposto em um painel de especialistas um ano antes. De 1976, quando a estrutura foi criada, até 2005, os rejeitos foram despejados sem controle. Depois, houve tentativa de mudar as condições, mas ainda assim a situação era “intolerável” sob parâmetros de segurança e de riscos geotécnicos. A probabilidade de falha estava acima do limite aceitável, mostram os documentos acessados pelo inquérito.

A última Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) emitida pela Vale antes do rompimento ocorreu em setembro de 2018, quatro meses antes da tragédia. Segundo o MP, o documento trazia “informações incompletas e distorcidas”. A certificação foi dada pela empresa alemã TÜV SÜD, que teria sido pressionada pela mineradora. Para os investigadores, “a VALE decidiu internamente que assumia os riscos inaceitáveis da Barragem I e impôs tal decisão ao Poder Público e à sociedade ao burlar o modelo de certificação de barragens e ocultar e dissimular as graves informações que mantinha na ‘caixa preta’ corporativa”.

Atualmente, os réus estão no prazo para apresentarem suas defesas, por escrito. Mas há ainda quatro réus que não foram citados, incluindo Fabio Schwartzman, ex diretor-presidente da Vale. Em dezembro, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região adiou, para 2024, a conclusão da análise de um habeas corpus que pede o trancamento da ação penal contra ele pelo rompimento da barragem.

Além do processo no Brasil, a Justiça alemã abriu ação contra a TÜV SÜD. Procurada, a Vale reafirmou “seu respeito às famílias impactadas” e respondeu que “sempre colaborou com as autoridades e continuará colaborando”. Já a TÜV SÜD disse que “continua profundamente abalada pelo trágico colapso da barragem” e que “as causas do rompimento ainda não foram esclarecidas de forma conclusiva”, mas diz estar “segura” de que não tem culpa pelo rompimento.

— Pelas investigações, muita coisa foi revelada, sabemos que crimes foram cometidos, as provas são contundentes. Por outro lado, a gente tem um sistema de Justiça que passou três anos com teses conflitantes sobre a competência do caso e ainda não condenou ninguém — afirma Danilo Chammas, advogado da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos (Avabrum). — Há uma sensação de impunidade, mas os familiares continuam com fé no processo e monitorando de perto.

Observatório das Ações Penais

Nessa semana, associações e organizações que atuam no caso lançaram o Observatório das Ações Penais sobre a Tragédia de Brumadinho, uma forma de facilitar o acesso aos documentos e ao processo judicial, através de uma linha do tempo.

— Possibilita o monitoramento sobre o processo e, ao mesmo tempo, constitui um acervo que contribui para o registro da memória não só do rompimento, mas de como o Judiciário lidou com esse fato e as decisões tomadas — explica Chammas, que destaca que o trabalho pode ajudar em outras ações contra tragédias semelhantes em acidentes de barragens. — Vítimas e familiares não têm o poder de fazer justiça, mas podem divulgar informações.

No acordo de reparação, há previsão de pagamentos de indenizações individuais, mas a Justiça ainda não decidiu todos os detalhes. Por outro lado, muitas famílias de vítimas e atingidos conseguiram acordos extrajudiciais com a Vale. Segundo a mineradora, já foram pagos R$ 3,5 bilhões a 15,4 mil famílias. Outro caminho é o das ações individuais, que se acumulam nos tribunais.

Estudo mostra redução das indenizações na segunda instância

Um estudo do Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab), uma das organizações designadas para prestar assessoria técnica à população atingida, mostra que, nas ações individuais, 75% das decisões em segunda instância são desfavoráveis aos moradores. O levantamento analisou uma amostra de 319 dos 464 acórdãos publicados até março do ano passado. Na maioria dos casos, os valores de indenização fixados na sentença da primeira instância são reduzidos pelos desembargadores.

V. Souza, que pediu sigilo sobre o primeiro nome, é uma dessas pessoas. Moradora do Córrego do Feijão, ela acionou a Justiça por danos morais e psicológicos porque sua casa foi usada como base para operações de resgate dos corpos, com sobrevoos diários de helicópteros. Em 2021, a Justiça determinou um pagamento a ela de R$150 mil em indenização, mas, no ano seguinte, após a Vale recorrer, os desembargadores diminuíram o valor para R$40 mil, alegando que, apesar do dano moral pela situação, ela não comprovou os danos psicológicos ou a ligação afetiva com o enteado e tia mortos.

— Fiquei com depressão tendo que tomar remédio depois do abalo emocional pela perda de parente e amigos e principalmente pelo sofrimento de ver os aviões passando com corpos pendurados — lembra Souza.

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