Para desempenhar seu papel, o advogado frequentemente entra em um território visto como imoral pelo senso comum da sociedade. Entretanto, todos, sem exceção, têm direito de defesa garantido pela Constituição. Mesmo as pessoas acusadas de cometer crimes considerados indefensáveis, como Amanda Partata.

A advogada de 31 anos, é indiciada por envenenar o ex-sogro e a mãe dele durante um café da manhã, em Goiânia. No centro das atenções, Amanda Partata é alvo da repulsa da sociedade, mas, ainda assim, possui o direito de ser assistida por profissionais. Para compreender como esses profissionais lidam com réus encarados pelos leigos como “sem defesa”, e para entender como lidam com as paixões do público, o Jornal Opção ouviu advogados criminalistas.

Para João Paulo Lopes Tito, mestre em Direito Constitucional, é preciso diferenciar a defesa técnica perante ao Judiciário, função do advogado, do julgamento popular do acusado. Apesar de reconhecer a relevância da opinião social, o profissional destaca que ela não é determinante.

“O foco do advogado é a aplicação correta da lei, com todos os seus meandros e consequências. Não é apenas interferir no “inocente” ou “culpado”, mas auxiliar o Judiciário na aplicação correta de penas, medidas alternativas, regime de cumprimento, eventuais benefícios legais e na própria classificação legal da conduta. Ou seja, antes de influir na conclusão sobre uma pessoa ser culpada ou inocente, o papel do advogado, como a dos demais auxiliares da Justiça, é a de garantir uma decisão justa ao seu cliente”, argumenta.

Na mesma linha de raciocínio do colega, o advogado criminalista, Gilberto Naves, lembra que o papel do representante legal não é defender de forma incondicional. “Nós temos que, em primeiro lugar, zelar pela pena justa. Ou seja, para que o processo seja dentro dos requisitos legais e que a pena a ser aplicada seja do tamanho da reprovação e da conduta praticada. Na medida correta”, explica.

Um outro advogado consultado pela reportagem, que preferiu não se identificar, afirmou que o advogado criminalista não defende o crime ou o criminoso, mas o direito do réu.

“Por mais paradoxal que seja, o primeiro direito do réu é ser bem acusado. Não importa o crime, ou o que ele faça. Eu trabalho com brechas, porque o inquérito é falho, a denúncia é falha. O coração do processo é a instrução, que sendo bem feita muda tudo. O que mais atrapalha os processos criminais hoje é a imprensa, porque ela cria no imaginário das pessoas uma culpabilidade que às vezes não existe”, ressalta.

Absolvição ou pena mais branda?

Em certos casos, dada a alta probabilidade de condenação, é comum que a saída é buscar a aplicação de uma pena mais branda ao réu por parte dos advogados. Segundo João Paulo Tito, a conclusão sobre a melhor estratégia de defesa utilizada vai da conversa com o cliente, e também da análise dos fatos e provas.

“Muitas vezes, a conduta em si submetida a julgamento é inegável ante os fatos e provas, ou mesmo assumida pelo próprio cliente. Mas, a consequência legal (pena, regime de cumprimento, perda de direitos) requerida pelos órgãos de acusação é excessiva, desproporcional e injusta. Nesse exemplo, é inútil buscar uma absolvição. A estratégia acertada, portanto, é atuar para que a lei seja aplicada corretamente e as consequências legais do ato sejam as mais justas e equilibradas possíveis”, diz.

Gilberto Naves explica que é necessário um compromisso com a verdade, que o advogado não pode querer fazer uma defesa contra provas. Para ele, o profissional deve se manter dentro dos limites legais, exercitar aquilo que é favorável ao cliente.

“A lei reserva é uma interpretação, uma aplicação do caso concreto, de acordo com vários fatores. Você leva em conta antecedentes, as circunstâncias do fato, a motivação, a provocação da vítima, o comportamento social do acusado. Então, são muitos fatores que levam o juiz a fazer a fixação da pena dentro de determinados parâmetros. O advogado precisa fazer aquilo que é benefício legal, que possa favorecer o cliente, que possa mostrar para o juiz”, destaca.

“Por exemplo, uma questão da menoridade, que tem atenuante legal, uma questão da cooperação do acusado na investigação do crime, é minorante. O estado emocional de quem está praticando a conduta tem preponderância também no fato. Enfim, você deve pautar naquilo que se apura do fato”, completa.

Quebra de confiança

A reportagem também procurou abordar os casos em que o cliente mente para o advogado, ou até mesmo muda sua versão perante o juiz. Para João Paulo Tito, é impossível uma atuação eficaz e competente do advogado que desconhece a realidade de seu cliente, quando há quebra de confiança.

“A mentira coloca o profissional em terreno pantanoso, incerto, e sua atuação certamente sairá prejudicada, acarretando prejuízo ao próprio cliente. Se o cliente não confia no próprio advogado, a ponto de mentir, logicamente que há uma quebra de confiança, o que implica em motivo de sobra para o encerramento do contrato de prestação de serviços advocatícios.

Já a mentira no Tribunal, o especialista a diferencia em dois casos distintos: o primeiro se o cliente é uma testemunha, em que configura crime, e o segundo em que o réu, mesmo podendo ficar em silêncio, minta e gere tumulto no processo.

“Se o cliente for testemunha e mentir nessa condição, isso implica em crime de falso testemunho e o advogado que orienta essa conduta certamente será condenado por participação. Já a mentira pelo réu, apesar de não criminalizada, é rejeitada pela maior parte dos nossos doutrinadores e dos nossos tribunais, por entenderem que o réu, mesmo podendo ficar em silêncio, não pode causar confusão no processo e agir de má fé. Uma mentira tumultua o julgamento. Logo, o advogado também não deve orientar essa prática a seu cliente, sob pena de ser considerado como um mau profissional, em conduta de flagrante má-fé processual”, alerta.

Sobre a quebra de confiança, Gilberto Naves afirma que o advogado tem duas alternativas. Ou romper o contrato profissional, ou esclarecer ao juiz que a defesa do advogado é técnica, e o acusado estaria promovendo uma autodefesa.

“A primeira alternativa, quando existe divergência entre aquilo que o acusado diz para você, depois diz em juízo ou perante a qualquer outra autoridade, é você rever o seu compromisso profissional com ele.
Agora, por exemplo, quando você é defensor público, ou quando você está nomeado pelo juiz, que você não é uma escolha do cliente, você pode ficar exclusivamente na defesa pública”, pontua.

Ainda conforme a fonte ouvida, que preferiu não se identificar, a perda da credibilidade pode ser um problema na vida do profissional. “Ele (cliente) tem que falar a verdade. Sou um advogado que trabalha só em cima da verdade, da ética, não pode jogar sujo com o juiz. Não pode perder credibilidade com o Ministério Público, ou o juiz, jamais”, recomenda.

Em alguns casos, alguns advogados podem fazer o cliente assinar uma declaração, atestando que o que ele disse é verdade. Mas, tanto João Paulo Tito, quanto Gilberto Naves, afirmam não ser uma prática corriqueira.

“A presunção, sempre, é de boa-fé. Tanto do cliente para com o advogado, quanto do advogado pra o cliente, e de ambos para com o processo e o Judiciário”, diz Tito.

“Quanto o cliente é contratado, uma das primeiras coisas que o advogado pede, em todas as regras, é que ele seja verdadeiro com ele, que ele decline toda a narrativa do fato em todas as suas minúcias, para que o advogado tenha compreensão do fato. A confiança dos dois lados deve prevalecer. Por isso é que às vezes não tem essa prática de colher essa declaração. Se o cliente não confia no advogado, destitua, ou se o advogado não confia mais no cliente, ele sai da causa”, afirma Naves.

Restrições

Alguns criminalistas, seja por um motivo específico, moral ou outro qualquer, pode não pegar alguns casos, como por exemplo um estupro, ou ainda estupro de vulnerável.

Inicialmente, Tito afirma que sua predisposição inicial é a de que qualquer pessoa merece uma defesa técnica equilibrada. Apesar disso, reconhece que existem casos que a natureza dos fatos prejudica sua atuação por questões morais e pessoais.

“Há casos em que a atuação traz risco à vida do profissional, como por exemplo a defesa de membros de facções criminosas. E há, naturalmente, situações em que a repulsa e a crueldade do caso é tamanha que prejudica a efetividade da defesa. Casos de estupro, estupro de vulnerável e crimes contra crianças, de modo geral, causam isso, e dificilmente eu também aceitaria o contrato. Mas, se da análise dos fatos, verificar-se que a pessoa foi acusada injustamente, por exemplo, ela também se torna vítima, e depende de uma boa defesa”, argumenta.

Para Naves, trata-se de uma discussão filosófica. Na opinião dele, depende das circunstâncias, o advogado não deve escolher sua causa pelo tipo penal, mas por um julgamento justo, mesmo reconhecendo a autonomia e liberdade do profissional.

“Ele pode escolher o tipo até o ramo em que ele quer atuar. Acho que você não pode fazer essa negativa pelo tipo, você tem que analisar as circunstâncias. Agora, se aquele fato causa repulsa, você não deve nem examinar. Se você for pegar uma causa, que seja repulsiva aos olhos da sociedade, e aquilo realmente aconteceu, você vai pegar é a aplicação da pena justa. Nós temos na faculdade um exemplo que a maioria dos professores do direito penal passam aos alunos. Rui Barbosa comemorou um dia no escritório que tinha conseguido reduzir uma pena de mais de 300 anos de cadeia para pouco mais de 200. Os alunos ficaram inquietos e questionaram qual seria a diferença na vida dele. Ele falou justiça, porque a pena de 200 é justa, a de 300 não era”, exemplificou.

Na tentativa de fundamentar sua opinião, Gilberto Naves ainda lembrou o caso de Amélia Vitória, menina que morreu em Aparecida de Goiânia.

“O sujeito foi preso, teve a casa incendiada, mas era inocente. Seria justo abandonar ele só pelo fato da acusação ter sido estupro? E se não foi ele? Nós temos estatísticas muito preocupantes do volume de inocentes que são condenados. É um volume altíssimo. Quantas vezes a pessoa, por exemplo, nas revisões criminais de São Paulo, aqueles reconhecimentos por fotografia que depois, quando você vai apurar, a pessoa confunde e um é condenado sem nunca ter tido no espaço-tempo que aquele caso aconteceu”, refletiu.

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